#10 | a tal da energia feminina
a febre machista, transfóbica e conservadora com roupagem mística
nos últimos anos o discurso de energia feminina ganharam um grande destaque nas redes sociais, o tema, que já era discutido lá na era temercore em rodas de sagrado feminino e leituras de mulheres que correm com os lobos, conquistaram um novo público, um pouco mais fundamentalista.
o resultado da popularização deste discurso foi o mesmo para qualquer outro grande debate de cunho místico na internet: virou mercado, e um mercado bastante lucrativo.
basta rolar alguns reels do instagram ou passar meia hora no youtube ou no tiktok para dar de cara com as famosas coachs de energia feminina, e o discurso, que já tinha espaço em meios magistas há muitos anos, sendo citados em livros sobre a wicca e em obras como o caibalion, ganha uma nova roupagem, um tanto machista, transfóbica e conservadora.
✷ a régua da família tradicional
o fundamentalismo religioso viu na energia feminina uma brecha para comer um pouco pelas beiradas, mesmo que de forma velada - na verdade, nem tão velada assim. o mercado de influenciadores, que teve uma crescente exponencial na última década é um prato cheio para fazer o que os conservadores mais querem: influenciar.
e bem, não é como se os influencers de lifestyle realmente tivessem um lifestyle próprio e não apenas seguissem o que está bombando no mercado, e acontece que, nesses últimos anos, o que bombou foi o tal discurso de “como ser mais feminina”. com isso, o discurso de energia feminina apenas cresceu, de forma deturpada e seguindo os moldes do mercado.
como esperado dos conservadores, a energia feminina que, em meios magistas, fala sobre o equilíbrio e a polaridade universal ou sobre a parte “feminina” que habita em todos os seres, agora serve para vender laços, vestidos floridos e um discurso de boa moça, delicada, que fala baixo e se comporta, que busca um marido alfa - seja lá o que significa isso -, que vai cuidar dos filhos, ser mãe do marido, limpar e cozinhar enquanto o homem provê para a família. o famoso discurso da família tradicional, onde a mulher é submissa e fica em casa cuidando do lar.

claro, como boa feminista eu até entendo que existam mulheres que, de fato, querem essa vida, mas o problema aqui é quando esse vira o modelo de influência para as outras mulheres, uma espécie de régua do que é esperado de nós dentro de uma sociedade, uma vez que, se a mulher não seguir esses moldes, ela está “desconectada” da sua energia feminina, como se isso a fizesse menos mulher. nada mais é do que a reprodução do discurso machista e patriarcal que é imposto sobre nós de como é certo ser uma mulher, seguindo, é claro, a lógica da igreja cristã - que, mais uma vez, matou e continua matando milhares de mulheres ao redor do mundo, seja incentivando a violência doméstica ou queimando-as em fogueiras caso elas fujam deste modelo, como ainda é feito em muitos países.
✹ a transfobia como um pilar de apoio
não é novidade que os conservadores detestam qualquer pessoa que fuja do que eles moldaram como o correto perante as palavras de seu deus, com isso, as pessoas trans se tornaram um grande inimigo em comum dos fundamentalistas religiosos, afinal, nada mais vai contra o seu discurso “bíblico” de papel de gênero do que uma pessoa trans.
e não vamos ser hipócritas, mesmo quando o papo de energia feminina estava resguardado apenas nas rodas de sagrado feminino das jovens místicas, ele já era um discurso bastante transfóbico, afinal, para muitas dessas rodas, apenas mulheres com útero eram “sagradas” - e isso, infelizmente, acontece até hoje.
o debate de energia feminina, seja nas rodas de sagrado ou nos discursos das coachs, sempre teve como um de seus pilares a transfobia, afinal, para essas pessoas a natureza é apenas isso, feminino e masculino, dentro de um papel imaginário criado pelo homem. tudo e todos que fujam desse padrão não possuem espaço de fala ou de existência, uma vez que não existe nada que o homem teme mais do que alguém ou algo que ele não pode controlar e categorizar dentro de sua mente limitada.
✷ mas qual é a natureza feminina?
particularmente, após tudo isso que vimos nestes últimos anos, eu não gosto de falar com esses termos, digo, feminino e masculino, mas entendo que eles são muito mais fáceis de serem compreendidos aqui no ocidente - talvez o mais próximo disso seria o quê? o yin e o yang? -, contudo, essa energia nada mais é do que a polaridade, o úmido e o seco, a vida e a morte, a inércia e o movimento, tudo que faz parte da natureza e que, muitas vezes nem paramos para pensar sobre. você não olha para a chuva e pensa “energia feminina” ou para o solo árido e pensa em masculino, então por que colocar isso em nós? por que nos colocar em um papel, em uma caixa que não nos cabe?

mas se formos pensar em energia feminina de fato e no que ela representa em uma palavra seria: caos. é a desordem e a ordem, é o fogo da raiva que queima nosso estômago e a compaixão que aquece nosso peito, é a chuva que nutre o solo seco e a tempestade que arranca as árvores do chão. não existe um papel, não existe delicadeza e, muito menos, submissão.
talvez eu só consiga pensar em uma cultura que não enxergou a Terra como uma mulher, os keméticos, com o Deus Geb, fora eles temos Pachamama, Gaia, Mãe Terra.
a Terra é vista como feminina por muitas culturas porque ela nos nutre, nos dá a vida, mas também nos tira a vida, nos consome. falar que energia feminina é passiva é, literalmente, não olhar para o seu redor, não olhar para as mães de família que acordam às 3h da madrugada para pegar 3 ou 4 baldeações e trabalhar para ganhar um salário mínimo e alimentar seus filhos, é não olhar para as mulheres trans que sofrem a ferro e fogo o ódio de homens “de família” e continuam resistindo dia após dia, é não olhar para as mulheres que apanham de seus companheiros, que deixaram suas carreiras para cuidar do lar e agora caçam moedinhas do que sobra do mercado para que, um dia, elas consigam deixar seus lares sem ser em um caixão.
é fácil falar que mulher é cuidadora, que mulher é delicada quando sua rotina é ir para o pilates, fazer o devocional com o café com deus pai, comer uma comidinha fresca feita pela sua empregada e postar dezenas de stories no dia, falando que ama ser uma esposa troféu e que não trocaria essa vida por nada - saiba que seu esposo te trocaria, na verdade, ele vai te trocar assim que sua “energia feminina” passar dos 35 anos, mas você não pode reclamar, é a “energia masculina” dele, procurando energias mais jovens para expandir seu império.
✹ o que ganhamos com tudo isso?
ficou bem claro que se tem alguém que não sai bem dessa história são as mulheres, independente se forem cis ou trans, na verdade, apenas um pequeno grupo de pessoas leva a melhor com todo esse discurso de energia feminina: homens cis, brancos, conservadores, cidadãos de “bem” e da família tradicional. afinal, estes são as pessoas que mais possuem privilégios dentro da sociedade, até porque, pode não parecer, mas esse discurso também é racista, representando o estereotipo branco do que nossos pais e avós chamavam de Amélia, “a mulher de verdade”, uma mulher submissa, recatada, do lar, que ia para a igreja aos domingos, era branca e estava sempre arrumada, o estereótipo ideal da mulher que “era para casar”.
reforçar esse discurso um tanto démodé, ultrapassado e, bom, ridículo apenas contribui para que cada vez mais mulheres entrem em um ciclo de dor, sendo alimentadas por falas machistas, sendo deixadas de lado, engolindo sapos e morrendo um pouco mais a cada dia em que elas seguem esse papel estabelecido por homens para que elas nunca saiam da linha, nunca se rebelem, nunca se conheçam e jamais gozem do prazer de viver. alimentar esse discurso é alimentar um ciclo de ódio que, não apenas afetam pessoas que nasceram com útero, mas também mulheres sem eles e homens que não se enquadram nesse estereótipo do homem viril, provedor e machista - um estereótipo de um bando de brocha, nojento e de cú sujo, se me permitem a palavra.
✹ para ler em conjunto
recentemente, fiz algumas postagens que podem complementar esse assunto, deixo aqui para quem quiser explorar e se questionar mais sobre a bruxaria e a política: