#05 | bruxaria é política, ponto
a relação entre a bruxaria e a política & as práticas ancestrais como resistência ao colonialismo
com a ascensão da extrema-direita e a pauta fundamentalista religiosa que vemos na política brasileira nas últimas décadas, com direito à bancada evangélica e uma crescente associação entre pastores e políticos, fica quase impossível não se questionar sobre a ligação entre a espiritualidade - seja ela qual for - e a política mundial.
acontece que não existe nada neste mundo que não seja político, e a espiritualidade e a religião não são diferentes.
desde os tempos mais antigos, até mais recentemente, durante a ascensão do sistema capitalista, a religião e a política andaram lado a lado.
✷ caça às bruxas e a ascensão do capital
na obra de Silvia Federici, “O Calibã e a Bruxa”, a qual eu não me canso de indicar, a autora fala sobre ligação entre a caça às bruxas promovida pela igreja católica e, posteriormente, pelos protestantes, e o início do capitalismo, ali no século XVII.
coincidentemente, a caça às bruxas, praticada principalmente na Europa e em algumas das colônias de impérios europeus, como nas Américas, tem início ali em meados do século XV, atingindo seu apogeu durante os séculos XVI e XVII, junto com a queda do sistema feudal.
Silvia traça algumas linhas com essa “coincidência”, uma delas é justamente a demonização do sexo, que deveria ser apenas para fins reprodutivos, mas jamais para o prazer. afinal, o capital não precisava de pessoas felizes, mas sim de mais mão de obra, algo que também enfraquece leis que condenavam o estupro, por exemplo, impedindo também o acesso à métodos contraceptivos que já rolavam na época e, até mesmo, dificultando o acesso ao aborto.1
posteriormente na linha do tempo capitalista, a mulher deixaria de ser uma mão de obra para ser apenas uma máquina de reprodução - o que também é ser mão de obra -, cuidando do lar e parindo mais pessoas para serem exploradas pelo capital.
uma vez que o corpo feminino era apenas para a reprodução, qualquer mulher que vivesse sua sexualidade e a liberdade da solteirice estaria comungando com o demônio, encontrando seus carrascos pouco tempo depois.
outra “coincidência” era que pessoas com deficiência e idosos eram constantemente acusados de bruxaria, logo, iam para as fogueiras ou eram enforcados sem qualquer prova de que, de fato, essa pessoa praticasse qualquer forma da Arte. isso porque essas pessoas, aos olhos do capital, não tinham o mesmo poder produtivo que uma pessoa jovem e sem qualquer deficiência, por isso, seriam apenas mais uma boca para alimentar e consumir recursos, o que dava a eles também o passe livre de se aliar ao diabo.
curiosamente, a caça às bruxas teve uma menor escala na América Latina e no Caribe, quando comparado com outras colônias europeias, como os Estados Unidos. no livro, Silvia levanta a questão sobre a falta de mão de obra nessas colônias, afinal, se os povos originários e os povos escravizados fossem para a fogueira por bruxaria ao praticar suas crenças ancestrais, quem iria captar recursos desses lugares?
✷ espiritualidade é política e ancestral
mais recentemente, li sobre a espiritualidade quilombola e guarani, em obras como “a Terra dá, a Terra quer” de Nêgo Bispo e “Tekoá” de Kaká Werá. ainda que eu não tivesse dúvidas sobre a espiritualidade ser política, ler essas obras tornou tudo muito mais claro em minhas práticas e visão política.
dizer que política e espiritualidade não devem se misturar após ter contato com essas obras é praticamente criminoso.
isso porque esses povos vêm resistindo há séculos contra a exploração dos biomas e de suas pessoas, lutando na linha de frente contra um sistema que mata milhares dos seus todos os anos. uma parte considerável do que mantém essa luta de pé, apesar de todos os riscos que são enfrentados diariamente por essas pessoas, está dentro da cosmovisão desses povos. porque os Deuses e Deusas são também o ar que respiramos, a terra sob nossos pés e os animais que dividem esse lar com a gente.
“existe uma consciência no coração que está adormecida em cada um de nós quando vivemos essa suposta normalidade das condições cotidianas, que dificulta conhecer nossos diversos ‘lugares’ internos.”
- tekoá, Kaká Weká
lembrar que nosso entorno é sagrado, faz parte do que a bruxa quer resgatar em uma sociedade que está cada vez mais doente por consumo e se sente cada vez mais drenada e desesperançosa.
✷ resistir, organizar, lutar
encontramos os nossos com seus olhares vazios, indo e voltando do trabalho em condições desumanas e em escalas absurdas, nos culpando por não conseguir reciclar direito, ter lazer direito ou mesmo descansar direito da mente em meio aos anúncios de bets e cursos sobre marketing digital, em um feed cuidadosamente curado para nos manter rolando a tela de um aparelho feito de metais pesados que polui os solos e rios e escraviza pessoas em todo o sul global.
enquanto damos nosso suor para a manutenção de um sistema que não apenas nos adoece como também destrói nosso único lar, nossos patrões voam de jatinho particular de São Paulo para o Guarujá, financiam o agro que derruba nossas matas e matam nossos povos originários, vão para as Ilhas Maldivas no final de semana e nos incentivam cada vez mais a continuar nesse ciclo doentio, porque talvez um dia, nós pobres coitados, também possamos estar como eles. destruindo nossa casa e explorando nossos iguais. tolos somos.
cansados enquanto lutamos por uma falsa esperança de melhorar nossas vidas, mantemos um sistema que não deseja nos ver no topo, sem conseguir questionar a nossa precária situação. porque para que apenas 1% da sociedade mundial possa desfrutar de bilhões de dólares em suas contas bancárias, os outros 99% devem manter o capital girando e girando, em uma roda que sempre irá pesar pelo sofrimento dos mesmos que a fazem girar.

✹ cosmofobia e o medo da Terra
em “a Terra dá, a Terra quer” Nêgo Bispo fala sobre a cosmofobia dos povos da cidade. cosmofobia é a aversão do cosmos, de tudo aquilo que está ao nosso redor e que não foi colonizado por mãos humanas. o cosmos é a correnteza do rio, as finas areias da terra batida sob nossos pés, é a brisa que leva as folhas secas e o pólen que permite nascer novas flores.
temos aversão ao que o homem não tocou, por isso, poluímos nossos rios para que não possamos nos banhar em suas águas, colocamos porcelanato no chão para não tocar a terra e sujar nossos pés e fechamos as janelas para que a brisa não deixe as folhas dançarem ao nosso redor.
enquanto as pessoas sentem nojo de sua casa, o capital tem passe livre para explorá-la. se o homem recebeu de seu deus a permissão para estuprar, abusar e despejar seus dejetos sobre a Mãe Terra, que assim seja até a última gota de petróleo.
✷ bruxaria como caminho contracolonial
quando falamos que a bruxaria e a espiritualidade são políticas, dizemos isso de uma abordagem contracolonial, que defende a resistência à opressão e a colonização de povos e biomas.
é impossível ser bruxa e ser de direita, pois tudo que a direita prega vai contra o que a bruxa é.
o termo bruxa é usado hoje como uma forma de resistência, para lembrar não apenas das pessoas que morreram durante a caça às bruxas quando o capitalismo estava em seu desmame. mas principalmente para lembrar de todas as pessoas que enfrentam até hoje o ataque às suas crenças, que enterram seus irmãos mortos por lutar para que a mata continue de pé, é para lembrar dos antepassados que choraram ao deixar suas terras para serem judiados para além do mar e para dar voz às criaturas que sofrem a ferro e fogo a maldade humana.
antes de mais nada, a bruxaria é política porque ela se opõe a adorar um deus que entregou o paraíso para que os homens brincassem de poder.
✹ para ler em conjunto
recentemente, trabalhei outros artigos que podem complementar o assunto:
parece maluquice pensar que os seres humanos existem há milhares de anos, criaram métodos contraceptivos usando medicinas tradicionais, tinham conhecimento de ervas abortivas e da sexualidade, inclusive já tendo dildos desde a antiguidade. a igreja e o capitalismo foram tão certeiros em fazer a gente acreditar que eles são um sistema que “expandiu” a nossa vida, nos “dando” direito de escolha reprodutiva e nos fazendo acreditar que é tudo uma criação recente de homens brancos, que esquecemos quão ricos eram os povos que vieram antes do colonialismo cristão e europeu.
Que sensacional! Li aqui querendo marcar o texto inteiro, é incrível o quando essa sociedade foi moldada com esse pensamento e até uma necessidade de negar o natural né?
Esse ano li Descolonizando Afetos da Geni Nuñes e tive essa reviravolta de ideias do quanto essa relação de posse da terra transformou pra um viés destrutivo também as relações humanas
amei que vc citou Silvia Federici, minha mente explodiu quando eu li O patriarcado do salário dela, recomendo demais!