#07 | o problema do jovem místico
o que medicina da floresta, cerimônia do cacau, yoga, mantra para prosperidade, cristais e tantra tem em comum?
disclaimer: aqui não tenho o objetivo de apontar o dedo para ninguém que já tenha caído nas falácias do new age, afinal, eu também já caí! o intuito dessa edição é fazer com que cada vez mais pessoas parem para questionar essas práticas e entenda quão importante é estudar e respeitar essas culturas para criar uma espiritualidade mais consciente.
o movimento new age deu seus primeiros passinhos ali na década de 60 e 70, possuindo grande força também nas décadas seguintes, com seus cultos bizarros e cada vez mais criminosos.
se engana quem acha que o new age morreu no século passado, muito pelo contrário, esse movimento segue respirando sem ajuda de aparelhos, muito bem, obrigado.
basta ir em qualquer feirinha esotérica do centro ou rolar alguns reels do instagram para ver que o movimento new age malemá ganhou uma roupagem nova, talvez só seu discurso tenha ficado um pouco mais conservador e ele tenha ganhado o nome de “jovem místico”, mas esse mercado segue firme e forte em suas duas pernas: a apropriação cultural e a exploração do capital.
✷ medicina da floresta, mantra para prosperidade & tantra
o new age tem o poder único de juntar Ganesha, Jesus e Zeus em um mesmo lugar, independente do contexto histórico e cultural em que essas entidades estivessem inseridas, em uma grande salada mística que não respeita nenhuma dessas culturas, afinal, pra quê separar o que a espiritualidade e o palo santo podem unir?
talvez o grande problema do jovem místico seja esse, a falta de respeito com qualquer um. não existe um estudo, um questionamento e muito menos um bom senso. o movimento vende que tudo está em suas mãos, na hora que quiser, desde que seja conveniente aos seus interesses e de seu guru, que muitas vezes sequer pertence àquela cultura que você tanto quer se apropriar, digo, aproximar.
tradições “milenares” de povos Maias que foram criadas por alguma Susan do Alabama passam a ser consagradas por milhares de pessoas sem nenhum questionamento de sua origem, conhecimentos de povos originários que nunca foram comercializados agora valem milhões e práticas que tinham como finalidade trazer conhecimento através do desconforto do corpo passam a ser ensinadas como uma prática de bem-estar, totalmente corrompida por gente branca do ocidente que jamais teve respeito por aquele povo que passou milhares de anos aperfeiçoando aquela tradição.
✹ apenas o que me convém
há alguns anos conheci o trabalho de uma querida no instagram, vendia o famoso sagrado feminino e o tantra, uma prática que o ocidente amou adotar de forma completamente deturpada e sexualizada. seus retiros, de apenas 2 dias em um lugar chique, com comida vegana e prática de yoga com o sol nascente valiam uns sete ou oito mil reais na época, e ainda estava barato, ela estava chutando baixo. nesses fatídicos retiros de um final de semana em uma chácara no Rio, as mulheres aprenderiam o tantra, tudo que elas precisassem para colocar em prática, isso mesmo bastavam 2 dias para elas saírem de lá como mulheres tântricas. falei que estava barato!
mas é claro, esse tudo era nada, porque para aquelas mulheres, em sua maioria brancas e de classe média alta, apenas o lado bonito da prática é visto, o lado feio e não instagramável era completamente ignorado. assim, uma prática que vive há séculos, se torna apenas uma massagenzinha no pênis ou na vulva de seu parceire.
a meditação no cemitério, os rituais cadavéricos, o sangue e a carne são ignorados, existindo apenas o discurso vazio de que “o tantra liberta o prazer da carne”. de fato, o tantra liberta o prazer da carne, mas ele também te liberta da sua carne, a física, em seu mais verdadeiro sentido.
isso é apropriação cultural, é pegar a cultura de um determinado povo e a espremer sem nenhum remorso para caber no ego de outros, ignorando a história, a luta e as pessoas que nasceram e viveram inseridas naquele meio. isso é colonialismo em sua mais pura face.
✷ nos dias de hoje, tudo se vende
o new age fez com que o jovem místico acreditasse que para que ele fosse próspero ele deveria adquirir algo, sejam mais cristais, mais retiros, mais medicina da floresta, mais qualquer coisa. só assim eles transcenderiam sua conta bancária, sim, porque prosperidade para essas pessoas se baseia apenas nisso: em dinheiro.
o capital está ligadíssimo com o new age, porque o new age vende. e o new age vende porque ele é bonito, é aesthetic.
vai me dizer que não é bonitinho ter uma coleção enorme de cristais, ou de incensos, ou de imagens de Deuses hindus? ou mesmo de roupas, acessórios e qualquer outra bugiganga que você talvez use um dia, seja um tarô bonito ou uma mesa radiônica, não importa, você precisa de algo para ter, mesmo que seja apenas para juntar poeira na estante e alimentar o ego de uma pessoa espiritualizada.
o new age não leva em consideração a natureza, não tem a real conexão. eles podem até fazer retiros em chácaras ou passam uma tarde na praia nudista, mas é apenas para alimentar o instagram com fotos abraçando algumas árvores e tomando rapé. porque eles não conseguem ter o real contato com a natureza, eles não ligam para ela e pra sua gente de verdade. porque a única prosperidade que vale para eles é a material, mas não a que nos une uns com os outros em um grande senso de coletividade - essa união fica apenas nos retiros de tantra ocidental, se é que me entende.
✹ o new age e a natureza
além das tradições indígenas e hindus, o new age amou se apropriar de outra coisa, cristais. acho que não tem nada que o new age goste mais do que cristais. e realmente cristais são lindos e estaria mentindo se dissesse que não tenho alguns, mas desde que parei para pensar de onde eles vinham, os cristais não tem mais o mesmo brilho pra mim.
para que os cristais cheguem em nossas mãos eles precisam ser extraídos da natureza, uma tarefa que nem sempre é limpinha, envolve o suor de muita gente escravizada, a poluição de muitos rios com mercúrio e outros metais pesados e, principalmente, o derramamento de sague de povos originários e animais nativos. ou vocês acham que o garimpeiro vai mesmo respeitar demarcação de terra indígena e se uma onça pariu há poucos metros da veia de um cristal? na-na ni-na não, nada pode parar o capital.
alguns deles até podem ser encontrados em deslizamento de terra, mas estes são poucos. outros são subprodutos de extração de metais como cobre ou ouro. seja como subproduto ou como uma extração em busca daquele minério, o cristal chega em nossas mãos com muito sangue envolvido.
e sabe o que é o pior? esse tipo de material pode ser facilmente substituído por outros na maioria dos rituais, seja por ervas, por um punhado de terra, por um alimento que poderá ser consumido mais tarde. não há nenhuma necessidade de ter uma coleção enorme de cristais ou de palo santo, ou de qualquer material que venha de fontes desconhecidas. o único motivo para que exista tantos cristais sendo vendidos é por sua estética, uma necessidade criada pelo capital.
a gente não está mais em um lugar em que não podemos questionar a origem das coisas que consumimos - se é que algum dia já estivemos neste lugar. se em culturas antigas as pessoas trituravam pedras preciosas para adornar roupas, acessórios e maquiagens, essa não pode ser a nossa realidade. a Terra não sustenta mais tamanho abuso.
✷ resolução rápida para problemas difíceis
o new age é acessível, ele está presente em cursos, aulas de yoga e, principalmente, em vídeos do tiktok e contas com milhares de seguidores no instagram. e mesmo que seja fácil distinguir esse tipo de conteúdo, muitas pessoas desesperadas e mesmo iniciantes caem nesses discursos, porque, mais uma vez: são acessíveis.
tudo parece muito fácil, você apenas precisa de um cristal de quartzo rosa na sua garrafinha de água para abrir seu chakra do coração, ou então inserir um ovo de obsidiana na vagina algumas vezes na semana para curar todas as suas sombras. o new age vende porque ele oferece uma resolução rápida, que pode ser ensinada em apenas 1 minuto em um vídeo na rede social.
boa parte desse tipo de conteúdo chega para pessoas desesperadas, que buscam ajuda para se libertar de algum sofrimento, então elas caem em classes de tantra yoga, em finais de semana em uma chácara no litoral para tomar alguma medicina da floresta e, pior ainda, em sessões de constelação familiar, que vão a ensinar de forma bastante machista que todo o problema da vida dela é causado pelas mulheres que vieram antes, seja sua mãe, sua avó, sua tataravó.
a carinha de jovem místico que o new age adota faz com que pessoas questionem a veracidade de práticas mais sérias e baseadas em estudos, porque nada vem tão rápido, fácil e atinge tantas massas quanto a ajuda do new age.
✷ mas como saber que um conteúdo é new age?
comumente os conteúdos new age tem uma característica difícil de ser ignorada: eles são rasos. o criador raramente se aprofunda na cultura que ele apropria e, muito menos no que é, de fato, aquela prática.
o hinduísmo é a religião favorita para a apropriação cultural dos new ages, o motivo por trás disso é simples: parece exótico, místico e, principalmente, porque é uma cultura que está viva, respirando, e possui milhões de pessoas que podem facilmente explicar o básico e, como eles precisam apenas do básico para vender seus retiros, então basta. não há nenhum respeito pela cultura, por seus Deuses, muito menos pelas pessoas nativas e pela história que elas carregam, que mantiveram viva sua cultura milenar apesar das inúmeras invasões portuguesas e pelos séculos de colonialismo britânico.
religiões pagãs que há muito já se foram necessitam de estudo e, por isso, são mais difíceis de serem apropriadas por quem se contenta com o básico. mas isso muitas vezes não para ninguém, afinal, quantas reencarnações de Cleópatra e Nefertiti estão vagando por aí nos dias de hoje? e os arquétipos de Deusas como Afrodite e Atenas? nem mesmo a Cléo escapou de virar arquétipo!
tudo que parece muito fácil tem boas chances de ser new age, principalmente quando o criador do conteúdo é questionado e vem com respostas vagas, beirando um “foi Kālī que sussurrou em meu ouvido depois de tomar rapé que eu preciso ensinar as mulheres a transmutarem a energia sexual que se agarrou em seu útero após transar no carnaval”. não existe estudo, nem respostas, apenas capitalismo, apropriação e mau-caratismo.
por isso, nossa arma sempre será essa: estudo. e não somente, mas também questionamento e confronto, principalmente confronto. como eu disse no post “bruxaria é política, ponto”.
enquanto o new age se apropria de culturas, deturpa práticas milenares e explora o capital tirando dinheiro de pessoas desesperadas, temos que unir forças para questionar essas práticas, impedir sua disseminação, confrontar e estudar para que cada vez menos gente caia em suas falácias.
é preciso manter vivas as tradições, respeitar aquelas que já partiram e, principalmente, as que permanecem de pé, lutando para que elas não sejam usadas para o deleite do homem branco. lutar ao lado de povos originários e suas inúmeras manifestações e estudar a história daqueles que permanecem de pé, lutando para que suas crenças não sejam transformadas em mais uma máquina de fazer dinheiro pela mão de mais invasores.
o new age é o colonialismo & capitalismo em uma roupagem de um moço evoluído. e a bruxaria não pode seguir pelos mesmos passos.
✹ para ler em conjunto
para ampliar essa discussão, recomendo algumas leituras que fazem questionar sobre esse tema:
dark crystals: the brutal reality behind a booming wellness craze (artigo em inglês sobre o lado obscuro da extração de cristais)
‘new age’ beliefs common among both religious and nonreligious americans (artigo em inglês sobre a adesão do new age nos EUA)
fique também com algumas leituras complementares sobre esse assunto que saíram nas nossas edições:
muito obrigada por esse texto. sou uma pessoa que gosta de estudar religiões e filosofias orientais e de matriz africana por não me identificar com os ideais cristãos, mas tampouco com o ateísmo, e sempre achei muito torto os discursos mais disseminados nas redes sociais sobre espiritualidade. até então, sabia que se tratava de um movimento, mas não entendia que ainda é o new age.
você escreve sobre política e espiritualidade indo direto ao ponto, com um vocabulário acessível e tem muita facilidade pra explicar pontos importantíssimos, como a exploração causada pela extração de cristais. se houverem mais textos como esse e o da quinta edição a caminho, estarei pronta pra ler.
seu texto é incrível Bea, amei como você abordou todos os tópicos e isso soma muito com o que eu venho pensando há um tempo: o consumismo espiritual. Basicamente, parecido (senão igual) à mulher do exemplo de "curso tantra" que você falou. Será que nós, que estamos buscando melhorar via espiritualidade, realmente precisamos de um oráculo a mais? Ou um pacote enorme de velas de alto luxo? Ou até mesmo uma mentoria que não é tão significativo? Será que a espiritualidade precisa desses "itens materiais" pra promover um crescimento mesmo? E se sim, no que diferencia entao o trabalho pagão do trabalho dos falsos profetas nas igrejas onde a salvação é promovida atraves das "doações"? Enfim, muitas reflexões sobre esse mundinho do jovem místico que não busca realmente entender o que diz ou não respeito a si!